Antonioni e incomunicabilidade são palavras que o público se habituou a conectar como sinônimos. Descobrir ou rever títulos de sua filmografia na retrospectiva do cineasta italiano realizada pela 47a Mostra permite compreender como a relação entre os termos é abrangente.
Ainda assim, as mutações da subjetividade e da sociedade que Michelangelo Antonioni (1912-2007) sondou ao longo de sete décadas de atividade não caberiam numa fórmula única. “A Aventura” (1960), “A Noite” (1961) e “O Eclipse” (1962), títulos que se convencionou juntar na “trilogia da incomunicabilidade”, sintetizam as principais marcas autorais, ou seja, o estilo e a temática predominantes no cinema de Antonioni. Esses filmes, plenamente inseridos no apogeu da etapa modernista da história do cinema nos anos 1960, resultam de um processo de amadurecimento de ideias e formas que o diretor havia começado a experimentar há mais de uma década. A impressão de apogeu que se manifesta nessa fase não impede o salto quântico que se observa com a entrada da cor no universo do diretor, a partir de “O Deserto Vermelho” (1964).
A retrospectiva Michelangelo Antonioni que o público da Mostra tem a oportunidade de ver em 2023 estimula não apenas a compreensão de um conjunto coerente e da progressão de sua complexidade. Ela também evidencia como a obra de Antonioni, além da importância histórica, sedimenta aspectos que definem o cinema contemporâneo mais autoral, como a rarefação narrativa, o expressionismo sensorial ou as situações sem motivo e indeterminadas.
A cronologia começa com os curtas que Antonioni dirigiu antes de realizar o primeiro longa, em 1950. Os dois primeiros, “Gente do Pó” (1947) e “Limpeza Urbana” (1948), são, como estudos e desenhos feitos por artistas plásticos, ensaios em que se esboça uma característica recorrente do cinema do diretor. As figuras humanas aparecem quase sempre integradas aos espaços, executando trabalhos de pesca, navegação e lavagem das ruas, nos quais o ambiente guarda tanta importância quanto os movimentos e as ações.
O que interessa aqui não é tanto o registro de práticas, mas o modo como o cineasta relaciona os elementos em composições predominantemente plásticas e rítmicas.
Os primeiros longas de Antonioni nos anos 1950 podem ser descritos como melodramas protagonizados por burgueses que não têm o trabalho como principal preocupação. O cineasta se interessa pelo avesso da situação de conforto material, pela impossibilidade de evitar o desconforto espiritual, o vazio ou o tédio, temática que aproxima sua obra da literatura existencialista de autores italianos como Cesare Pavese e Alberto Moravia.
Em “Crimes da Alma” (1950), “A Dama sem Camélias” (1953) e “As Amigas” (1955), o cineasta explora as possibilidades da linguagem cinematográfica, evitando o naturalismo psicológico, os diálogos explicativos, as cenas expositivas, dilatando a duração e desviando-se de fórmulas narrativas.
A convergência de temas e formas se consolida a partir de “O Grito” (1957), em que se percebe a desolação de Aldo projetada na paisagem de horizontes desfocados pela bruma, que se segue ao isolamento emocional de Claudia e Sandro na aspereza da ilha de “A Aventura”, a desconexão de Lidia na perambulação de Jeanne Moreau em meio à arquitetura de Milão em “A Noite”. Essa tendência “expressionista” se radicaliza com a desumanização do mundo, visível na enigmática sequência final de “O Eclipse”, no uso da cor como manifestação dos estados de alma de Giuliana em “O Deserto Vermelho” e na alteração cromática feita em vídeo em “O Mistério de Oberwald” (1981).
A ideia da incomunicabilidade, que alguns autores preferem chamar de “erosão de Eros” e de “desertificação do desejo”, é uma constante nesta fase. Aqui, o cinema de Antonioni transita, como as artes visuais, do figurativo ao abstrato.
Com “Blow Up - Depois Daquele Beijo” (1966), o diretor se descola do universo italiano e das neuroses burguesas e se lança numa investigação ao mesmo tempo policial e metafísica, ao acompanhar as peripécias de um fotógrafo que capta, sem perceber, um assassinato.
O que o olho não vê e a imagem revela? A interrogação se projeta sobre o próprio cinema, com sua capacidade de produzir percepções distintas das habituais, de proporcionar outras formas de ver um mundo em que o humano não ocupa mais o centro.
Em “Zabriskie Point” (1970), Antonioni faz avançar sua estética da desaparição, passando da ilha deserta de “A Aventura” ao próprio deserto, desta vez na Califórnia. “Zabriskie Point” e “Profissão Repórter” (1975) têm em comum o deserto como cenário e símbolo, espaço de fuga e de apagamento.
O acidente vascular cerebral que Antonioni sofreu em 1985 o deixou com restrições de movimentos e na fala, mas não o condenou à incomunicabilidade. Ele ainda realizou em seu percurso grandioso “Além das Nuvens” (1995), e em “O Olhar de Michelangelo” (2004), o cineasta assina seu testamento com um diálogo dele com outro Michelangelo, o pintor renascentista, um filme que não cabe em palavras.